Muito ouvimos falar de pessoas que deixaram de dançar flamenco por conta de lesões. Mas por que tantas pessoas que dançam há anos mantém sua integridade física enquanto tantas outras simplesmente conseguem fazer um estrago muitas vezes recuperável apenas com intervenção cirúrgica?
Bom, sabemos que há poucos estudos dentro da Cinesiologia desta Dança, portanto, tudo que vou descrever neste artigo é baseado meramente na minha experiência como bailaora desta Dança desde 1998, sem ter nenhuma lesão decorrente da prática desta Dança e no que tenho observado desde muito cedo , quando ainda não praticava, mas assistia muitos espetáculos em São Paulo, inclusive Antonio Gades ao vivo em frente ao Teatro Carlos Gomes, quando eu ainda morava em Campinas e fiz minhas primeiras aulas de Dança Flamenca , em 1993.
No entanto, quando o maestro uruguaio Esteban García chegou em Cuiabá, participei da primeira Oficina, e desde então, fiz aulas ininterruptas durante 3 anos com este grande maestro, de formação clássica, que também fez aulas de Ballet Clássico com Denise França quando integrou o corpo de Baile da escola, em 1998 e 1999. Nas aulas de Ballet Clássico com Denise, ao lado de Esteban, pude aprender profundamente as diferenças posturais destas duas danças. E foi nessa comparação que pude notar o quanto é importante adotar alguns cuidados posturais e também suavizar os sapateados. Ao construir meu tablado , que funcionou de 1999 a 2004, eu me envolvi bastante com o ensino da Dança Flamenca, uma vez que o maestro Esteban García foi para Espanha onde reside até hoje. Minha dificuldades iniciais eram especialmente com alunos que insistiam – mesmo eu tendo corrigido inúmeras vezes – em golpear o tablado com uma força excessiva e desnecessária. Esses alunos tinham dificuldade em adquirir agilidade no sapateado devido a utilização do excesso de força. Também notei a utilização de uma postura corporal desalinhada. Em 2002 eu iniciei a Faculdade de Educação Física na UFMT e então pude compreender que tanto a postura corporal desalinhada quanto o excesso de força eram suficientes para destruir ligamentos e articulações. Um impacto completamente desnecessário, que poderia poupar muitos bailarinos de cirurgias de joelhos, quadris e tornozelos. Isso sem contar nas lesões menores, como joanetes e calos.
Então, uma vez detectado o erro, surge mais um desafio: desenvolver uma didática de correção postural nas aulas de Flamenco. É preciso conscientizar nossos alunos que, tão importante quanto apresentar uma linda coreografia, é preservar sua integridade física. É preciso que todos eles compreendam, que mesmo sendo maçante, é preciso uma prática repetitiva e sistematizada dos movimentos a fim de corrigir a técnica e polir os movimentos para utilização dos mesmo com exatidão e sem riscos. Isso tudo juntamente com o ensino dos palos (ritmos) do Flamenco, em especial os de 12 tempos, acaba tornando o conteúdo das aulas bastante denso e muitos alunos podem desistir ou achar que já sabem e que não precisam desse trabalho. Infelizmente é necessário. É preferível perder alguns alunos mas preservar a integridade física de tantos outros, hoje, mais do que nunca, estou certa disso. E posso afirmar com plena convicção que é muito mais difícil corrigir um corpo viciado na execução de um movimento do que ensinar do zero um aluno que nunca vivenciou o Flamenco.
O sapateado é uma técnica da dança flamenca demasiadamente importante. Nela, utilizamos as partes dos pés – tacon, planta, taco, golpe, ponta, executando séries de percussão dentro dos palos flamencos, com destreza e agilidade. O excesso de força é o inimigo número um da agilidade. A falta de dissociação postural também. Quando o bailaor ou bailaora movimenta demais o tronco , oscila em flutuações, descentraliza a energia cinética dos pés o que torna o sapateado mais lento e pesado. Quando a forca é demasiada, além de gerar desnecessário impacto sobre articulações, ligamentos e tendões, retarda o tempo , impedindo a execução de um sapateado veloz e preciso. Há que se usar força, claro, mas uma força suficiente para que o sapateado fique limpo. A postura corporal ideal inclui joelhos semi-flexionados (não muito, pois flexão demais sobrecarrega menisco), o peso do corpo predominantemente colocado na parte posterior dos pés, região dos calcanhares. O peso quando é colocado na parte anterior dos pé, ou seja, nos dedos, sobrecarrega joelhos. É importante que o sapateado seja limpo e claro. Os pés não podem escorregar, deslizar, derrapar.
Além desse posicionamento, há que haver um trabalho de linhas corporais. As linhas corporais no flamenco devem ser alongadas. Acredito que esse seja o grande diferencial na Dança. A linha descreve a maneira como cada bailaor ou bailaora utiliza o espaço em torno de si mesmo. Para ter linhas alongadas, é necessário ter consciência e esforço constante para estender o corpo em todas as direções, alongando pescoço, abaixando os ombros, contraindo a musculatura abdominal, em especial do músculo diafragma. Essa concentração na postura deve acontecer durante a execução dos movimentos. É um exercício de consciência corporal e dos movimentos.
E como trabalhar linhas corporais, postura e sapateado num aluno que já esteja viciado em executar o movimento de maneira errônea e que suas intervenções no intuito de corrigi-lo estejam sendo inócuas? Penso que quando o aluno não tem consciência de suas linhas, sua postura e a velocidade de seu sapateado, ele vai sempre acreditar que está executando com leveza, com agilidade, alongado. Na prática e em meus estudos como Pedagoga do Movimento, tenho observado, que exercícios na barra, no centro mesmo, que muitas observações são ineficientes se esse aluno não for conscientizado de cada ponto que precisa ser lapidado e aprimorado em sua dança.
Para Guerra (2006), citado por HELLANN (2008),“O movimento humano é um processo de altíssima complexidade, que se caracteriza por variedades e qualidades inumeráveis e por uma versatilidade de respostas motoras devido às várias combinações neuromusculares possíveis a cada momento."
A dança ao organizar seus códigos nas suas diversas linguagens, produz e ocupa continuamente o espaço transformando o estado do corpo em cada movimento que produz. Para que isso ocorra é necessária uma apurada integração dos sistemas corporais a fim de assegurarem a aquisição e a manutenção de domínios tão especializados e tão específicos (MARKONDES, 2001)”.
Um dos pontos a serem muito observados pelos alunos é que , se eles não são profissionais e não sobrevivem da Dança, não dispondo assim de um trabalho complementar de aprimoramento físico, não podem jamais ser exigidos fisicamente em excessivos e exaustivos ensaios. Tudo tem que ser proporcional aos seus objetivos. Se seu objetivo é meramente acadêmico, não exija de seu corpo o treinamento de uma Cia de Dança que geralmente possui ortopedistas, fisioterapeutas e massagistas à disposição de seu corpo de baile. E o pior que essas exigências descabidas e desproporcionais são muito comuns em escolas que se promovem às custas da saúde e integridade física de seus alunos, que acabam por ter de largar seus estudos por conta de lesões irreversíveis.
Para Guerra 2006, “O que se encontra na maioria das escolas de dança está muito aquém do desejado, pela falta de infra-estrutura adequada para salas de aula, e até mesmo pelo despreparo de muitos profissionais que atuam no mercado da dança. Em companhias profissionais têm surgido o interesse de proporcionar aos bailarinos uma assistência completa, dada por uma equipe multiprofissional composta por professores de dança altamente qualificados, educadores físicos, fisioterapeutas, nutricionistas, médicos, psicólogos, entre outros; com o objetivo de diminuir a incidência de lesões e o absenteísmo, e melhorar a qualidade da performance corporal (BITTAR, 2004).”Segundo HELLMAN (2008), há que se conscientizar os praticantes para que escutem e percebam os sinais de seu corpo, procurando aprimorar sua técnica evitando lesões e traumatismos e, quando ocorrerem, buscar ajuda imediata de um especialista.
“A Dança é uma Arte que deve ser feita com amor, dedicação mas, acima de tudo, com respeito ao instrumento mais precioso: seu próprio corpo.”
Basicamente as considerações feitas com base na minha experiência bastante modesta com a Dança Flamenca são estas. Já estão sendo feitos sérios estudos na Universidade de Cádiz sobre Cinesiologia e Flamenco e há muito que ser avaliado uma vez que esta é uma Arte de raízes esparsas, deixo aqui a sugestão para fisioterapeutas avaliarem a questão mais profundamente.
Yasmine Amar (Educadora Física formada pela UFMT, professora de Dança Oriental desde 1994 e de Dança Flamenca desde 1999, Instrutora de Yoga formada pelo OM Rudrá Núcleo Cultural, pós-graduada em Pedagogia do Esporte pela UFMT)